Publicado em: 16 de dezembro de 2019
Recolhidos na sala secreta, após uma longa sessão de debates, depoimentos e apresentação de provas, os jurados preenchem os quesitos e realizam a votação que definirá se, afinal, o réu deve ser considerado inocente ou culpado pelo cometimento – ou tentativa – de crime doloso contra a vida. Cumprindo a Lei 11.689/2008, a votação se encerra assim que se formar a maioria. Se os primeiros quatro dos sete jurados chegarem à mesma conclusão, os demais não precisam votar.
E, assim, o julgamento do tribunal do júri se encaminha para o final, quando o juiz, em frente ao réu, faz a leitura da sentença. O destino do acusado, entretanto, não se define na sala de sessões: apesar do princípio constitucional da soberania dos vereditos, o sistema permite que uma série de questões sejam levadas à segunda instância e aos tribunais superiores após o fim do júri.
Ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) cabe enfrentar temas como o julgamento contrário à prova dos autos, a inovação probatória na renovação do júri e a anulação parcial da decisão do conselho de sentença – assuntos desta última matéria da série Caminhos do Júri.
No sistema do júri, o livre convencimento dos jurados e a soberania dos vereditos são tão relevantes que a lei permite ao juiz leigo absolver o réu mesmo quando tenha apontado, no preenchimento dos quesitos, a presença da materialidade do crime e da autoria delitiva.
Esse juízo de clemência, baseado na íntima convicção do jurado, tem respaldo no inciso III do artigo 483 do Código de Processo Penal, introduzido em 2008 pela Lei 11.689. A norma cristaliza a ideia de que o juiz leigo age de acordo com sua consciência, considerando, inclusive, questões humanitárias e o seu senso de justiça para decidir.
Por outro lado, o mesmo CPP prevê, no inciso III, alínea “d”, do artigo 593, que caberá recurso do julgamento quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. Além disso, o parágrafo 3º fixa que, se a apelação estiver fundada nesse argumento e o tribunal de segundo grau se convencer de que a decisão é realmente contrária às provas, o réu deverá ser submetido a novo julgamento; entretanto, não se admite uma segunda apelação pelo mesmo motivo.
Isso faz surgir a seguinte questão: se o jurado decide mediante sua íntima convicção e absolve o réu sem estar atrelado à prova dos autos, é possível o Ministério Público interpor apelação sob o fundamento de que a decisão foi conflitante com o acervo probatório?
O tema foi analisado pela Terceira Seção no HC 313.251, impetrado em favor de réu que havia sido inicialmente absolvido pelo conselho de sentença. Contudo, em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou a realização de novo júri, por entender que a decisão de absolvição foi completamente dissociada dos elementos probatórios.
No pedido de habeas corpus, a defesa alegou que, após a lei que reformou o procedimento do júri em 2008, os jurados podem optar por motivações sociais, emocionais ou de política criminal, de acordo com sua íntima convicção – resguardada pelo sigilo das votações.
Dessa forma, para a defesa, diante do inciso III do artigo 483 do CPP, a única interpretação que preserva o dispositivo e não fere a soberania dos vereditos é a de que o recurso previsto no artigo 593, inciso III, alínea “d”, se tornou exclusivo da defesa, cabendo à acusação unicamente a alegação de eventual nulidade processual, não podendo atacar o mérito da decisão do júri.
O relator do habeas corpus, ministro Joel Ilan Paciornik, apontou que a absolvição do réu pelos jurados, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o tribunal cassá-la quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão do conselho de sentença com as provas apresentadas em plenário.
“Concluir em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, ao meu ver, não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico, previsto no artigo 483, III, do CPP”, afirmou o relator.
Quando, no julgamento de apelação, o tribunal determina a realização de novo júri em razão do reconhecimento de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária às provas, não é possível conceder às partes o direito de inovar o conjunto probatório com a apresentação de novo rol de testemunhas a serem ouvidas em plenário.
O entendimento foi firmado pela Quinta Turma na análise do HC 243.452, ao anular despacho que, após determinação de renovação do júri pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, concedeu às partes o direito de indicar novas testemunhas para o julgamento popular. Em razão do despacho, o Ministério Público indicou três testemunhas que não haviam sido arroladas na denúncia.
O relator do pedido de habeas corpus, ministro Jorge Mussi, explicou que, depois de arroladas as testemunhas pelas partes e discutidos eventuais requerimentos de urgência, nos termos do artigo 422 do CPP, o juiz presidente está autorizado a dar continuidade ao procedimento do júri, realizando uma espécie de saneamento do processo e determinando sua inclusão em pauta do tribunal do júri, como fixado pelo artigo 423 do mesmo código.
Assim, quando o tribunal dá provimento à apelação para determinar a realização de novo julgamento em razão de o primeiro veredito ter sido manifestamente contrário às provas, o ministro Mussi apontou que não poderia ser admitida inovação no conjunto probatório que será levado ao conhecimento do novo conselho de sentença.
Segundo Mussi, admitir essa possibilidade desvirtuaria a regra recursal prevista no artigo 593, inciso III, alínea “d”, do CPP – especialmente por causa da norma contida na parte final do parágrafo 3º, que impede a segunda apelação motivada por contrariedade ao acervo probatório.
“Com efeito, se o Tribunal ad quem conclui que o veredito exarado pelo conselho de sentença contém vício no que diz respeito à análise do conjunto probatório produzido em plenário, deve determinar que outro julgamento seja realizado para que o novo júri faça uma nova análise sobre o mesmo acervo de provas, caso contrário se estaria diante do primeiro juízo de valoração da prova inédita sem que fosse possível outro pleito de anulação com base no artigo 593, inciso III, alínea ‘d’, do CPP”, concluiu o ministro.
No mesmo contexto, caso reconheça decisão contrária à prova dos autos, o tribunal não pode anular parcialmente a decisão do júri para determinar novo julgamento somente em relação às qualificadoras, ainda que o entendimento dos jurados seja manifestamente contrário ao conjunto probatório apenas nesse ponto.
O entendimento da Quinta Turma foi aplicado em processo no qual o Tribunal de Justiça da Bahia, dando provimento à apelação do Ministério Público, determinou que o réu fosse submetido ao julgamento popular apenas para decisão sobre a qualificadora prevista no parágrafo 2º, inciso IV, do artigo 121 do Código Penal (homicídio cometido mediante traição, emboscada ou com dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima).
O ministro Marco Aurélio Bellizze, à época integrante do colegiado penal, afirmou que, considerando ser a qualificadora elemento acessório que, agregado ao crime, tem a função de aumentar os patamares máximo e mínimo da pena, sendo dele inseparável, o reconhecimento de que a decisão dos jurados foi contrária às provas nesse particular implica, necessariamente, o revolvimento do fato de forma integral (HC 246.223).
Além da ampliação das hipóteses de absolvição sumária, a Lei 11.689/2008 também excluiu a obrigatoriedade do reexame necessário da sentença absolutória. Dessa forma, a doutrina e a jurisprudência entenderam que, a partir de agosto de 2008, a nova lei revogou tacitamente o artigo 574, inciso II, do CPP, o qual previa o recurso de ofício da sentença absolutória com fundamento em circunstância que excluísse o crime ou isentasse o réu de pena.
O tema foi analisado no HC 278.124. A denúncia era por tentativa de homicídio qualificado, mas houve absolvição sumária pelo juiz de primeiro grau, que concluiu que o acusado teria agido em legítima defesa. Após a sentença, os autos foram remetidos ao Tribunal de Justiça do Piauí para exame do recurso de ofício então previsto no CPP.
No habeas corpus, a defesa alegou a existência de dois recursos de ofício contra a mesma decisão. No primeiro, em setembro de 2008, o tribunal reformou a sentença absolutória e pronunciou o réu, e, em razão do foro especial por prerrogativa de função – ele foi eleito prefeito –, condenou-o pelo crime de homicídio tentado à pena de oito anos e oito meses de reclusão. Já no segundo recurso, em março de 2012, a corte teria mantido a sentença absolutória.
No voto – que foi seguido pela maioria do colegiado –, o ministro Felix Fischer destacou que, em razão da entrada em vigor da Lei 11.689, desde 8 de agosto de 2008, deixou de existir o reexame necessário para a decisão que absolve sumariamente o acusado no procedimento do tribunal do júri.
Considerando que, de acordo com o artigo 2º do CPP, as normas processuais possuem aplicação imediata quando de sua entrada em vigor, o ministro Fischer entendeu que os recursos de ofício não remetidos aos tribunais de segunda instância ou não julgados pelas cortes até agosto de 2008 não poderiam mais ser apreciados, tendo em vista que o procedimento – necessário apenas para dar eficácia à sentença de absolvição sumária no júri – já não estaria mais em vigor.
De acordo com o ministro, embora a sentença de absolvição sumária e o encaminhamento da remessa necessária ao tribunal tenham sido praticados ainda na vigência do artigo 574, inciso II, do CPP, Felix Fischer afirmou que “o julgamento do primeiro recurso de ofício foi posterior à reforma promovida pela Lei 11.689/08, ou seja, a condição de eficácia da sentença de absolvição sumária não foi praticada a tempo, sendo atingida pela nova legislação, tornando-se despicienda”.
Seguindo essa fundamentação, a Quinta Turma anulou todos os atos subsequentes ao julgamento do primeiro recurso de ofício e reconheceu o trânsito em julgado da decisão que absolveu sumariamente o réu em primeira instância.
De acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), a condenação penal definitiva imposta pelo júri é passível de desconstituição mediante revisão criminal, de forma que não é legítimo, nesses casos, invocar a cláusula constitucional da soberania do veredito do conselho de sentença.
Todavia, no julgamento da revisão criminal, havendo empate entre os desembargadores, seria aplicável o princípio da decisão mais favorável ao réu, como no caso dos pedidos de habeas corpus?
O tema foi enfrentado pela Quinta Turma do julgamento do HC 137.504, no qual a defesa, após condenação do réu à pena de 19 anos e três meses de reclusão, ajuizou revisão criminal com o objetivo de afastar as qualificadoras aplicadas na pena de homicídio, bem como a condenação por tentativa de homicídio contra outra vítima.
Segundo a defesa, no julgamento da revisão, houve empate na câmara criminal do Tribunal de Justiça da Bahia em relação ao afastamento do crime de tentativa de homicídio, mas o presidente do colegiado – que também proferiu voto – deixou de proclamar decisão favorável ao condenado, o que teria violado o artigo 615, parágrafo 1º, do CPP.
Ao opinar pela denegação do habeas corpus, o Ministério Público Federal afirmou que, em decorrência do princípio constitucional da soberania dos vereditos, a decisão do júri deverá prevalecer em todos os aspectos, sobretudo quando, em caso de revisão criminal, houver empate nas decisões.
Entretanto, a ministra Laurita Vaz – além de reconhecer a possibilidade de reanálise da decisão do júri mediante revisão criminal – afirmou que, no caso de empate no julgamento da revisão, deve-se aplicar a regra do artigo 615 do CPP, reproduzida para o habeas corpus no parágrafo único do artigo 664.
Segundo a ministra – também com base em precedentes do STF –, mesmo que se trate de ações específicas, e ainda que o empate em revisão criminal não tenha regulamentação específica, cabe a interpretação analógica, expressamente permitida pelo artigo 3º do CPP.
No caso dos autos, Laurita Vaz destacou que, apesar de o acórdão do tribunal estadual registrar que os desembargadores, por maioria de votos, julgaram improcedente a revisão criminal, “verifica-se, da leitura das notas taquigráficas acostadas aos autos, que, quanto ao pedido de afastamento da condenação por tentativa de homicídio, houve empate na votação, uma vez que, dos seis desembargadores presentes, três desembargadores acolheram a súplica revisional, enquanto outros três indeferiram o pleito”.
Assim, a Quinta Turma reformou o acórdão de segunda instância para, diante do empate, afastar a condenação do réu pelo crime de tentativa de homicídio.
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A Secretaria de Jurisprudência do STJ tem vários produtos que abordam entendimentos da corte em relação ao júri.
Na edição 63, Jurisprudência em Teses destacou que a soberania do veredito não impede a desconstituição da decisão por meio de revisão criminal.
Já as edições 75 e 78 foram inteiramente dedicadas ao tribunal do júri. Entre os assuntos abordados, estão a anulação parcial da decisão do conselho de sentença e o quesito genérico de absolvição em relação à autoria e à materialidade do crime.
Fonte:STJnotícias